sexta-feira, 19 de agosto de 2011

"Teoricamente nada pode nos acontecer"

Foto da aeronave acidentada

            Em 26 de julho de 1979, uma aeronave Boeing 707-300C da empresa alemã Lufthansa, prefixo D-ABUY realizava o vôo LH 527, cargueiro regular que ligava a cidade de São Paulo a Frankfurt com escalas no Rio de Janeiro e em Dakar.
            A primeira parte da viagem foi realizada normalmente e uma nova equipe composta por 3 tripulantes (comandante, primeiro oficial e engenheiro de vôo) assumiu o vôo para completar seu maior trecho, ligando o Rio de Janeiro a Dakar.
            Às 18:05 o LH 527, com 3 pessoas à bordo, abastecido com 47.000Kg de combustível JET A-1 iniciou seu táxi até a cabeceira 27 do aeroporto do Galeão (atualmente cabeceira 28) e durante este procedimento foi orientado que, após a decolagem, deveria realizar curva à direita para aproar o VOR Caxias (CAX) mantendo 2.000 pés e chamar a freqüência do controle de aproximação.
            VOR é um auxílio à navegação aérea e trata-se de um radiofarol que emite uma freqüência de rádio para o equipamento de navegação da aeronave, dando a direção da mesma para a antena do VOR. Esta direção em linha reta é denominada radial. A maioria dos VORs, como é o caso do VOR CAX, também apresentam a distância entre a aeronave e o mesmo (Distance Measure Equipment ou DME).
            O procedimento adotado pelo controle de aproximação para as aeronaves que se dirigiam para o setor norte e nordeste do aeroporto e transmitido pela torre para o LH 527, possuía uma restrição à subida normal, com objetivo de evitar conflito com uma aeronave sobre CAX em aproximação para o Aeroporto Santos Dumont (PP-VLY) e outra na perna do vento da pista 27 do Aeroporto do Galeão (Varig 409).
            Cabe aqui ressaltar a proximidade dos aeroportos que aliada ao relevo da região obrigava que as aeronaves em aproximação para o Aeroporto Santos Dumont cruzassem a área do Aeroporto do Galeão a baixa altitude, restringindo as decolagens e necessitando que as aeronaves que decolavam das pistas 27 e 32 do último efetuassem curva à direita com sobrevôo do setor norte do aeródromo, necessitando muita atenção de todos envolvidos.
Aeroporto do Galeão e Aeroporto Santos Dumont
            Ao receber a instrução de saída, o comandante do LH 527 se mostrou um pouco confuso com o procedimento e, ao questionar o controlador da torre, lhe foi transmitida a mesma instrução e que deveria chamar o controle de aproximação logo em seguida.
Este diálogo levou aproximadamente 4 minutos e, com esse pequeno atraso, o tráfego que impunha restrição ao procedimento normal a ser executado pelo LH 527 evoluiu de forma a não mais ser necessária tal restrição. Porém, essa situação não foi informada ao controlador de saída, que manteve as instruções dadas à tripulação.
            Às 18:27 o LH527 deixava o solo do Galeão e logo em seguida passou a comunicar-se com o controle de aproximação do Rio.
 Neste momento passamos a acompanhar os diálogos estabelecidos entre a tripulação o controle de aproximação. A transcrição está segmentada para facilitar a compreensão. Palavras entre parênteses sublinhadas são meramente explicativas e não fazem parte da transcrição oficial.

LH 527 = Lufthansa 527
APP = Controle de Aproximação

18:28
LH 527: Galeão, LH 527, boa noite.
APP: 527, Rio, prossiga LH.
LH527: Nós estamos passando 1.500 pés para Caxias.
APP: Vire à direita, rumo 040, virando à direita, rumo 040 e mantenha 2.000 pés até próximo aviso, LH527, e aumente sua velocidade se possível.

            A tripulação do LH 527 não foi informada sobre o motivo das restrições, porém seguiu as instruções dadas pelo controle, tanto que já voava no rumo 040 a 2.000 pés poucos segundos depois.
    No entanto, a saída 16 que era executada pelo LH 527 possuía uma restrição de velocidade de no máximo 250 nós abaixo de 10.000 pés, o que não foi verificado pela tripulação que entendeu a instrução do controlador como uma liberação total de velocidade.
            A conversa entre os pilotos gravada pelo cockpit voice recorder mostra exatamente esta situação, somada a certo desconforto por estar voando com uma grande aeronave, a baixa altitude e sem contato com o controlador há cerca de 1min30s.

18:28 47 – Ele só falou aumente sua velocidade.
18:29 04 – Eu estou no 2 agora. (provavelmente referindo-se ao rádio VHF2)
18:29 29 – Nós estamos sob controle radar, isto significa que teoricamente nada pode nos acontecer. Bem, Caxias está 20 a 23 milhas a 2.000 pés e subindo para 4.000.

            Cerca de 30 segundos após esse diálogo o controlador, que até então estava lidando com outros tráfegos, volta a sua atenção para o LH 527 e é surpreendido pela posição da aeronave, além da distância de 10NM (milhas náuticas) da tela do seu radar onde, por seus cálculos, a mesma deveria estar. No entanto, a aeronave já voava perigosamente próxima a Serra dos Macacos. Neste momento voltamos ao diálogo entre o controle e a aeronave.

18:31
APP: LH, vire à direita rumo 140 agora.
APP: LH 527, vire à direita no rumo 140 e suba sem restrições.
LH 527: Ciente, deixando 2.000 pés, LH 527, virando à direita no rumo 140
APP: Continue virando à direita até o rumo 160, LH, e aumente sua razão de subida para 3.000 pés por minuto.

            O LH 527 não cotejou a primeira instrução embora tenha iniciado a curva conforme instruído. A última chamada do controle coincidiu com o som do GPWS (Ground Proximity Warning System) da aeronave, indicando que esta voava perigosamente próxima do solo.
            Neste momento a tripulação executou uma curva ascendente de aproximadamente 3.2Gs (3.2x a força da gravidade) o que, no entanto não evitou a colisão da asa esquerda com algumas árvores e a posterior desintegração da aeronave numa trajetória de 800 metros. Após o impacto a aeronave pegou fogo. Não houve sobreviventes.
Foto do local da colisão
            A investigação das causas do acidente ficou sob responsabilidade do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (CENIPA) que, após verificar que não havia indícios de defeito na aeronave, voltou a atenção para os diálogos entre a aeronave e o controle além do serviço de vetoração radar prestado.
            A Instrução do Comando da Aeronáutica ICA 100-12, que atualmente determina as regras do ar no Brasil, em seu item 14.2.1 estabelece que “a vetoração radar é o mais completo serviço radar proporcionado. Sempre que uma aeronave estiver sob vetoração radar, será proporcionado controle de tráfego aéreo e o controlador será responsável pela navegação da aeronave, devendo transmitir para a mesma as orientações de proa e mudança de nível necessárias”.
            Na época do acidente, estava em vigor a MMA-DEPV 60-06, que possuía a mesma redação do item acima citado.
            No relatório final do acidente, o CENIPA aponta algumas falhas do serviço de controle de tráfego aéreo relativas à carga de trabalho e instruções emanadas pelo controlador durante a vetoração radar.
            Quanto à carga de trabalho, no momento do acidente o serviço de controle de tráfego aéreo era executado através de três scopes (posições ou telas de radar) ao invés de quatro que eram normalmente utilizadas. Além disso, a coordenação entre o controle de aproximação e a torre de controle do Galeão que deveria estar sendo realizada pelo controlador assistente de chegada estava sendo realizada pelo controlador assistente de saída. 
            No momento do acidente, o controlador de saída vetorava 5 tráfegos simultaneamente, sendo 4 no setor sul e 1 no norte, justamente o LH 527. Assinala o CENIPA em seu relatório final que no momento em que o LH 527 exigia a máxima atenção do controlador, este tinha a atenção desviada com situação de conflito de tráfegos no setor sul, que exigiam sua intervenção imediata, o que foi feito, porém emitindo instruções desnecessariamente detalhadas e extensas para outros tráfegos.
         Ressalta ainda que o serviço de vetoração radar exige intensa elaboração mental do controlador, não sendo recomendável ter mais de 4 aeronaves sob vetoração simultaneamente. Sendo assim, quando o controlador mais necessitava da atuação do seu assistente, ele estava realizando tarefa que competia ao assistente de chegada final, gerando um aumento na carga de trabalho do controlador de saída.
            Outro fato relacionado ao controle de tráfego aéreo destacado pelo CENIPA foram instruções incompletas dadas ao LH 527.
            Ao informar à aeronave de que ela se encontrava sob vetoração radar, o controlador deveria informar o motivo e o procedimento alternado em caso de falhas de comunicação, o que não foi feito.
          Além disso, ao solicitar que a aeronave aumentasse sua velocidade, o controlador não informou o limite pretendido e essa solicitação, como pode ser depreendido dos diálogos, foi entendida pela tripulação como uma liberação total de velocidade.
Porém, havia uma restrição de velocidade de no máximo de 250 nós abaixo de 10.000 pés dentro da Terminal Rio. A instrução dada pelo controlador tinha a intenção de que a aeronave não ultrapassasse a velocidade máxima da terminal e, no entanto, esta velocidade foi excedida pelo LH 527.  O excesso de velocidade, somado a um vento de cauda de 13 nós, fez com que a aeronave entrasse na área crítica mais rapidamente do que o controlador esperava.
Como em todo acidente, e neste não poderia ser diferente, uma série de fatores contribui para seu acontecimento. Restava uma pergunta a ser respondida: como a tripulação não notou que estava entrando em uma situação de perigo iminente?
Ao analisar a atuação da tripulação, o CENIPA levou em consideração principalmente os diálogos gravados pelo Cockpit Voice Recorder. Neles se tem uma forte noção de que a tripulação confiava plenamente que estava sendo monitorada pelo controlador em sua vetoração, tanto que cerca de 1 minuto antes da colisão, o comandante profere a emblemática frase “estamos sob vetoração radar, isto significa que teoricamente nada pode nos acontecer”.
Um segundo aspecto levado em consideração foi a carta de saída utilizada pela tripulação, pois a mesma era editada pela empresa, centrada no VOR Caxias e orientada para o norte verdadeiro.
No diálogo da tripulação pode-se verificar que o comandante consultava a carta, uma vez que menciona que Caxias está 20 a 23 milhas a 2.000 pés e subindo para 4.000.            A análise do CENIPA afirma que o comandante verificava na carta que poderia voar até 23 milhas DME do VOR Caxias a 2.000 pés e, posteriormente, deveria subir para 4.000 pés. Porém, o comandante provavelmente julgou que a carta era orientada para o norte magnético e interpretou o seu curso 040º magnéticos á direita (ou mais ao sul) do que realmente estava. Não percebendo a variação de 19º a oeste indicada na carta, ele provavelmente julgou estar mais ao sul, onde voar a 2.000 pés ainda seria seguro por mais um tempo.
Soma-se a isso a pouca experiência do comandante voando na região já que era apenas sua terceira missão no Rio de Janeiro e, no momento da colisão, era ele o responsável pelo monitoramento da navegação.
Trajetória aproximada do LH 527
Por fim, o CENIPA analisou a ultima instrução dada pelo controlador, quando este já havia verificado a situação perigosa em que se encontrava o LH527. Ao solicitar que a aeronave realizasse curva para livrar os obstáculos, o controlador com voz apenas ligeiramente alterada, utilizou o termo em inglês “just now” ao invés de “immediately” não transmitindo à tripulação a iminência do perigo, tanto que até o soar do GPWS na cabine a mesma realizava a curva de modo suave, não demonstrando sensação da proximidade com os obstáculos.
Como em todas as investigações de acidentes aéreos, o principal objetivo não é apontar culpados, mas que sejam evitadas novas tragédias.
O CENIPA em seu relatório final apontou como recomendações, entre outras:
- utilizar a vetoração radar somente em casos de necessidade operacional;
- que os controladores tenham em mente que uma espera em solo é mais interessante em todos os aspectos do que vôos a baixa altitude e alongamento de trajetórias;
- que pilotos devem sempre efetuar sua própria navegação, checando todas as instruções e dirimindo todas as dúvidas;
- que todas as cartas aeronáuticas para uso em área terminal devam ser orientadas para o norte magnético.
Atualmente, nenhuma saída do Aeroporto Internacional do Galeão utiliza a rota adotada pelo Lufthansa 527.


Texto: André Werutsky
Fotos:  1 – Wolfang Mendorf. ©Airliners.net
            2 – André Werutsky (ilustração Google Earth)
            3 – Marcos L. Britto (disponível em http://www.trekkbrasil.blogspot.com/)
4 – André Werutsky (ilustração Google Earth)

Fonte de pesquisa:
Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos. Relatórios Finais de Acidentes Aeronáuticos 1975 a 1979. N. 8 Volume II.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

WE ARE MARSHALL

Em 14 de Novembro de 1970, um sábado, os Pirates da Universidade de East Carolina receberam os Thundering Herd, da Universidade Marshall para uma partida de futebol americano. Foi um grande jogo com o placar final de 17 a 14 para East Carolina.
Após o jogo, os 37 jogadores, 8 treinadores e 25 torcedores do time da Universidade Marshall dirigiram-se para o aeroporto de Kinston na Carolina do Norte, onde embarcariam num vôo fretado que os levaria de volta pra Huntington, West Viriginia. Naquela noite, no entanto, o que era ter sido apenas o retorno de um time de futebol para casa se tornaria a maior tragédia ligada ao esporte universitário americano.
Na pista de Kinston encontrava-se a aeronave DC-9 de matrícula N97S pertencente à empresa Southern Airways, que realizaria o vôo Southern 932 sob o comando de Frank H. Abott Jr., de 47 anos, há 21 anos na Southern Airways com aproximadamente 18.557 horas de vôo, das quais 2.194 na aeronave DC-9. Naquele vôo ele seria auxiliado pelo primeiro oficial Jerry R. Smith, de 28 anos com 5.872 horas de vôo, das quais 1.196 no DC-9. Completariam a tripulação um coordenador de vôo charter além de duas comissárias.
Ás 18:38 o DC-9 decolou do aeroporto de Kinston rumo a Huntington num vôo de aproximadamente 50 minutos a 26.000 pés de altitude. 
Após 38 minutos de vôo, o Southern 932 foi transferido pelo Centro de Controle de Indianápolis para o Controle de Aproximação de Huntington, momento em que recebeu do controlador as condições meteorológicas de Huntington, que não eram boas, apresentando nuvens esparsas a 300 pés de altitude, teto de 500 pés, encoberto entre 100 e 1000 pés, visibilidade de 5 milhas com chuva leve e nevoeiro.
O Southern 932 foi autorizado pela torre de Huntington às 19:22 para uma aproximação de não precisão balizada por VOR para a pista 11 do aeroporto Tri-State.
O aeroporto Tri-State estava localizado na cidade de Huntington e possuía ILS (Instrument Landing System) equipado apenas com localizador, sem glide slope, ou seja, a aeronave teria a direção da pista guiada pelo ILS, porém, a altitude e a razão de descida deveriam ser controladas pela tripulação. A MDA, ou altitude mínima de descida (altitude na qual a tripulação deve ter contato visual com a pista para prosseguir na aproximação), era de 1240 pés acima do nível do mar. Como o aeroporto Tri-State possuía uma elevação de aproximadamente 828 pés acima do nível do mar, a altitude de decisão seria 400 pés acima do terreno.
A partir de 19:26 acompanhamos os últimos 9 minutos de vôo na cabine do Southern 932 através da transcrição do microfone da cabine e conversas de rádio da tripulação. Palavras em sublinhadas entre parênteses são meramente explicativas e não fazem parte da transcrição oficial:

CAM – Microfone do cockpit
RDO – Transmissões de rádio
-1 – voz identificada como do comandante
-2 – voz identificada como do co-piloto
-3 – voz identificada como do tripulante adicional
-? – voz não identificada
HTS – Controle de Aproximação de Huntington

1926:43.1          CAM-2           Temos uma milha ou duas para chegar, Frank, é tudo.
                        CAM-?           Sim.
                        CAM-1           Estamos no localizador.
                        CAM-3           Espero que não tenhamos isto o caminho todo. Está ruim.
1927:58.9          CAM-2           Lá está ela. (referindo-se ao marcador externo)
RDO-2           Southern 932, estamos passando sobre o marcador agora, no afastamento.
HTS              Southern 932, ciente, reporte na perna de aproximação do marcador.
CAM-1           Slats e cinco. (slats e 5 graus de flap)
RDO-2            Muito bem.
1928:11.0         CAM-1            Slats e cinco.
1928:35.6         CAM-1            Pelas luzes do solo, parece nevoeiro
CAM-2           Uma pena não é?
CAM-1           Você verificou aproximação perdida?
CAM-2           Tudo bem, você sobe para 2.700 pés pelo curso leste do ILS, para a   posição Shoals, reporta em Shoals e depois direto.
CAM-2           Som de risadas.
CAM-2           Bem, eu não sei.
1930:03.0        CAM-2           Acredito que metade daquelas luzes deveriam estar à nossa esquerda. Porém é difícil dizer.
1930:43.6         CAM-1           Estamos na chuva, tudo bem.
CAM-2           É, eu sei.
1930:49.6         CAM-1            Com certeza estamos. A temperatura está caindo.
CAM-2           Sim, ah, a chuva está misturada com nevoeiro
                                             Som de limpador de pára-brisas começa.
                                             Som do trem de pouso em trânsito começa.
CAM-2           Ok, você tem o aviso de não fumar, ignição, radar standby, auto shutoff armado, esperando pelo trem de pouso. Spoilers?
CAM-1            Armados.
                                             Som do click similar aos spoilers sendo armados
CAM-2            Checado.
1931:26.2         CAM-1            Aquela coisa capturou, como capturou? (glide slope do ILS)
CAM-2           É, é necessário.
CAM-1           Você está capturando o glide slope e não tem glide slope.
CAM-2           Eu devo ter capturado no, ah, no ILS, ah, Frank, sem levar em conta o glide slope. Eu não tenho captura, no entanto.
1931:49.8         CAM-1            OK, me dê, ah, vinte e cinco. (25 graus de flap)
CAM-2           Sim, está bom, tem a captura.
CAM-1           Tirei fora agora.
CAM-2           Tem vinte e cinco nos flaps, tudo ok.
CAM-1           Nós devemos estar sobre o marcador externo a dois mil e duzentos pés.
CAM-2           Isso.
CAM-3           Desculpe Frank.
CAM-1           Você vai chamar os mínimos? (altitude mínima de descida ou MDA)
CAM-2           Sim, com certeza. Eu cantarei eles pra você.
CAM-2          Conforme formos descendo, este tempo ruim tem que nos dar uma pequena pausa.
CAM-1           Bom, se for como ele disse, não está nem um pouco pior do que ele disse, porque ---
CAM-2           Leve descida.
CAM-1           Está nos levando para o nível do marcador.
CAM-?           Sim, é suficiente.
CAM-?           Sim.
1933:17.9         CAM-1            Deve ser um pouco de chuva.
1933:19.9         CAM-2            De volta à sopa. (de volta às nuvens e chuva)
CAM-1           Jerry, estarei voando em torno de cento e trinta. (130 nós)
CAM-2           Vou checar o tempo para você. Será por volta de dois minutos do, ah, do marcador externo.
1933:43.4          RDO             Som do marcador externo começa.
1933:47.9          RDO             Som do marcador externo cessa abruptamente
RDO-2           Southern 932, no marcador externo, aproximando.
HTS              Southern 932, autorizado pouso. Você pode informar quando avistar as luzes. Vento três quatro zero graus com sete.
1933:59.1                               Som similar com click do seletor de flaps.
RDO-2            Tudo bem, as luzes estarão boas com intensidade três, eu acho.
HTS              Ciente, é onde elas estão, com o coelho. (luzes de lampejo seqüencial)
                      Avise quando quiser que corte.
RDO-2          Muito bem.
CAM-2           Na velocidade.
CAM-1           Este piloto automático não está respondendo certo.
CAM-2           É.
CAM-1           Deve pegar.
CAM-2           Ok, eu tenho o tempo para você.
1934:32.4         CAM-2            Mil pés sobre o solo, razão e velocidade boas.
CAM-2           Velocidade um pouco acima, você tem doze. (120 nós)
1934:35.4         CAM-1            Vê alguma coisa?
CAM-2           Não, não ainda. Está começando a clarear um pouco no solo aqui, a, ah, setecentos pés.
1935:06.8         CAM-2           Estamos duzentos pés acima. (acima da MDA)
1935:10.6         CAM-3            Aposto que vai ser uma aproximação perdida.
1935:18.2         CAM-2            Quatrocentos pés. (acima da elevação do aeroporto)
1935:19.3         CAM-1            É a aproximação? (referindo-se a MDA)
CAM-2           Sim.
1935:21.3         CAM-2            Cento e vinte e seis. (126 nós)
1935:25.7         CAM-2            CEM. (100 pés acima do solo)
1935:26.5                               Som do impacto começa.
1935:32.5                               Fim da gravação.


Às 1935:21 o comandante iniciou procedimento de arremetida, mas, aproximadamente 5 segundos depois, a aeronave colidiu com árvores em um monte a aproximadamente 1,5Km da cabeceira da pista 11 de Huntington. Após a colisão sucedeu-se um grande incêndio. Todos os 75 ocupantes do Southern 932 estavam mortos.
Investigadores do National Transportation Safety Board (NTSB), órgão responsável por investigar acidentes aéreos nos Estados Unidos, iniciaram então a busca por pistas das causas do acidente.
Em 14 de Abril de 1972, o NTSB divulgou o relatório final NTSB-AAR-72-11 que apresentava como provável causa do acidente a descida abaixou da MDA durante uma aproximação de não-precisão sob condições adversas de operação, sem contato visual com a pista.
A grande questão, no entanto, era por que a tripulação desceu abaixo da MDA durante a aproximação, já que a conversa entre os pilotos mostrava que estavam sempre monitorando a altitude, cientes da MDA e do procedimento de aproximação perdida.
O primeiro aspecto a ser analisado foi a conversa entre os pilotos entre 19:31 e 19:34. Diálogos entre a tripulação mostram preocupação com o desempenho do piloto automático e o fato de o comandante ter recebido um sinal de glide slope (rampa de descida) no seu instrumento ILS, quando o aeroporto Tri-State não possuía tal equipamento.
A investigação do NTSB reportou que provavelmente o seletor NAV SELECT do piloto automático estava na posição ILS quando na verdade deveria estar na posição MAN G/P ou NAV LOC, posição correta numa aproximação guiada apenas pelo localizador. Porém, um aumento na razão de descida indica que a tripulação alterou o seletor para a posição correta. Além disso, da fala do comandante não há como concluir em que aspecto o piloto automático não estava respondendo corretamente, não sendo considerado este um fator contribuinte.
A investigação passou então a analisar se os momentos finais da aproximação foram influenciados por alguma referência visual no solo. A conversa entre os membros da tripulação na fase final do procedimento indicava que estavam começando a ver luzes no solo. Talvez, o fato de estarem começando a ver luzes somado ao conhecimento de que estavam chegando à base das nuvens, poderia ter levado a tripulação a continuar a descida abaixo da MDA.
Foi levada em consideração a possibilidade de a aeronave ter avistado as luzes de uma refinaria próxima ao aeroporto que, no entanto, era localizada bem abaixo da elevação da pista, o que poderia ter gerado a ilusão de que era possível continuar a descida quando na verdade, elevações no terreno se aproximavam à frente.
No entanto, de acordo com os investigadores, caso a tripulação levasse em consideração as luzes da refinaria, a diferença na elevação da mesma para a pista levaria a tripulação a aumentar a razão de descida, o que não aconteceu.
De acordo com o relatório final, não há nenhuma evidência de que a tripulação tenha avistado as luzes da pista ou luzes próximas, senão as luzes da refinaria. Em nenhum outro momento a tripulação mencionou contato visual com o terreno.
Assim, sem uma explicação contundente para a descida abaixo da MDA, os investigadores voltaram suas atenções para uma discrepância entra a altitude apresentada pelo gravador de dados do vôo (FDR) e as chamadas de altitude realizadas pelo primeiro oficial captadas pelo gravador de voz do cockpit (CVR).
Analisando os dados destes dispositivos, os investigadores descobriram que todos os avisos de altitude feitos pelo primeiro oficial, a não ser o realizado a 1.000 pés, possuíam uma diferença 200 pés acima da altitude real da aeronave conforme tabela abaixo:

            Chamadas          Gravador de dados       Elevação do Terreno     Rádio-Altímetro
            Co-piloto                (nível do mar)                (nível do mar)            (calculado)
 700 pés                      1.330 pés                         550 pés                   780 pés
 200 acima                  1.224 pés                         530 pés                   694 pés
 400 pés                      1.005 pés                         690 pés                   315 pés

Foram levantadas duas hipóteses para este fato: um erro no sistema estático da aeronave ou uso pelo primeiro oficial do rádio-altímetro como instrumento primário para definir altitude da aeronave ao invés do altímetro barométrico.
A primeira hipótese tem como ponto fraco o fato de que, se aeronave apresentasse um problema em seu sistema estático, haveria uma discrepância nas leituras de velocidade, o que provavelmente teria sido notado pela tripulação e não há evidência de que tenha acontecido.
Antes de passarmos a análise da segunda hipótese, cabe uma breve explicação sobre a diferença dos altímetros no painel de instrumentos:
O rádio-altímetro mede a altitude da aeronave através do eco da emissão de um sinal de rádio enviado pela aeronave, similar ao que acontece com o sinal de radar.
O altímetro barométrico, por sua vez, mede a altitude através de dados de pressão conhecidos informados de uma determinada altitude, tal como o nível do mar ou elevação de uma pista, por exemplo.
Assim, em terrenos localizados ao nível do mar, tal diferença é de baixa relevância. No entanto, em terrenos acidentados como no sobrevôo de vales ou montanhas, os dois tipos de altímetro apresentarão leituras diferentes.
No caso do Southern 932, a aeronave voava boa parte da aproximação sobre vales, mais baixos do que a elevação da pista. Sendo assim, caso o primeiro oficial tivesse usado o rádio-altímetro como instrumento primário para medir sua altitude, ele receberia um eco de uma altitude menor do que elevação da pista que viria a sua frente. De forma didática, podemos dizer que o terreno se elevaria à sua frente.
O ponto fraco da teoria de que o primeiro oficial usava o rádio-altímetro ao invés do altímetro barométrico é que, na gravação das vozes da cabine, em alguns momentos o comandante fez menção a leituras do seu altímetro barométrico, o que teria feito com que notasse a discrepância entre as altitudes informadas pelo primeiro oficial e seu instrumento.
Em seu relatório final, o NTSB afirma que não pode ser determinado por que motivo a tripulação prosseguiu na aproximação final sem contato visual abaixo da MDA e que, em nenhum momento na gravação de vozes do cockpit, fica demonstrado que a tripulação sabia que estava voando abaixo da MDA.
Destaca-se ainda o fato de que o comandante não começou a nivelar a aeronave antes de chegar à MDA e, após passar pela altitude que pensavam ser a MDA, o comandante levou 3,7 segundos adicionais para começar a subida da aeronave, resultando numa descida adicional de aproximadamente 90 pés, que, somados à discrepância de 200 pés entre a altitude real e a informada, adicionaram o último fator que contribuiria para o fim trágico do Southern 932.
O acidente, como já citado, foi a maior tragédia relacionada ao esporte universitário americano e gerou grande comoção na comunidade.
Um memorial foi instalado no cemitério de Huntington, onde se encontram enterrados a maioria dos atletas e torcedores. Na placa do memorial está gravada a frase: “Eles viverão nos corações das suas famílias e dos seus amigos e este memorial lembra a sua perda para a universidade e comunidade”.
Em 1972, uma fonte em homenagem às vítimas foi colocada na entrada da Universidade Marshall. Todos os anos, no exato momento da queda do Southern 932 a fonte é desligada e só é ligada novamente na primavera.
Com a morte dos atletas e treinadores do time de futebol americano da Universidade Mashall, foi cogitado o fim do programa de futebol. Porém, em 1971, com novo treinador e um time composto basicamente por calouros, os Thundering Herds da Universidade Marshall iniciaram seu ressurgimento das cinzas do acidente.
Após um primeiro ano desastroso que teve como único destaque uma vitória no último tempo de um jogo em casa, em 1992 e 1996 a Universidade Marhsall venceu a divisão I-AA nacional. Em 1997 a universidade subiu para a divisão I-A. Venceu a Mid-American Conference nos anos de 1997, 1998, 1999, 2000 e 2002.
A bela história de superação da Universidade Marshall e da comunidade de Huntington após a tragédia foi contada no filme “We are Marshall”, de 2006 (no Brasil “Somos Marshall”).

Texto: André Werutsky
Fotos:  1 – Creative commons
            2 – Relatório final NTSB-AAR-72-11
            3 – Chris Henry (disponível em http://www.flickr.com/photos/mustangdriver/)

Fontes de pesquisa:
National Transportation Safety Board. NTSB-AAR-72-11. Washington, D.C., 14 apr. 1972.
GERO, David. Aviation Disasters. Fifth ed. Stroud: History Press, 2009.